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Cenários pós Belo Monte: uma análise da violência em Altamira

Atualizado: 18 de dez. de 2019

Prof. Dr. José Q. Miranda Neto

Universidade Federal do Pará

Coordenador LEPURB


Nos últimos anos, os índices relacionados à violência em Altamira-PA têm crescido de forma alarmante. De acordo com o último Atlas da Violência do IPEA, a cidade atingiu a segunda colocação em todo o Brasil, compondo um cenário preocupante que merece ser analisado de forma criteriosa.

Figura 1 - Usina de Belo Monte (montagem)


O cuidado se refere ao fato de que o fenômeno da violência possui múltiplas determinações, isto é, não pode ser explicado apenas por um ou outro fator. Mesmo os índices estatísticos e dados concretos da violência (a exemplo da taxa de homicídios) devem ser devidamente interpretados e co-relacionados a outras variáveis.


Para além disso, é necessário diferenciar a violência propriamente dita da "sensação de violência", isto é, da percepção que as pessoas tem de que determinadas áreas são mais ou menos violentas. Esse é um dado igualmente importante, pois pode conduzir ações por parte do poder público e de certos agentes, como a polícia. Não é raro que essas ações afetem direitos e ameacem a liberdade de muitas pessoas, notadamente em áreas mais pobres e segregadas da cidade.


Uma das questões mais importantes relacionadas ao caso de Altamira é o que chamaremos de "fator Belo Monte". A obra em questão e todos os processos a ela relacionados alteram a dinâmica social em diferentes escalas. Com a instalação da usina hidrelétrica, houve o crescimento populacional (especialmente na sede do município) e também a expansão territorial urbana de Altamira, com a ampliação da cidade em diferentes eixos de ocupação.


O afluxo populacional para a área de Belo Monte foi intenso. De acordo com os dados de admissão da CCBM, mais de 45 mil pessoas foram contratadas até 2014. Além das admissões oficiais, muitas pessoas migraram de forma espontânea, fator esse previsto no próprio Estudo de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monde ao afirmar que “ao todo e ao longo do período de obras, 96 mil pessoas cheguem à região, incluindo aquelas que estarão trabalhando nas obras, o que deverá causar outros impactos” (ELETROBRÁS, 2009, p. 85).


O pico das obras foi no ano de 2013, a partir de quando a oferta de trabalho começou a diminuir. Os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) do Ministério do Trabalho e Emprego indicaram um processo de admissões e desligamentos que envolveu mais de 40 mil trabalhadores apenas no município de Altamira-PA.

Gráfico 1 - Admissões e Desligamentos em Altamira-PA


Pele Gráfico 1 se constata que uma grande quantidade de trabalhadores chegou à cidade de Altamira, sobretudo entre 2011 (ano de início efetivo das obras de Belo Monte) e 2015, quando se tem o processo mais acelerado de desmobilização da mão-de-obra envolvida no projeto.


Apesar do plano de desmobilização da mão-de-obra da Norte Energia¹, não se pode negar que houve um aumento populacional importante, sobretudo na área urbana. O EIA de Belo Monte havia definido esse fenômeno ao afirmar que, ao final da obra, "a vinda de migrantes para a região também vai diminuir. No entanto, como ocorre normalmente em grandes empreendimentos, uma parte da população que veio atraída pelas obras acaba ficando na região" (ELETROBRAS, 2009).


Segundo a previsão populacional da Norte Energia (2019), Altamira cresceu em 40 mil habitantes entre 2010 e 2014, reduzindo-se para algo em torno de 120 mil no final 2019. Esses dados, no entanto, são apenas uma projeção a ser confrontada com as informações do CENSO demográfico a ser realizado em 2020.

Gráfico 2 - Populações projetadas para os municípios da AID entre 2010 e 2020


Esse forte crescimento populacional foi seguido de uma redução do conjunto de atividades econômicas em Altamira, o que se refletiu na diminuição da oferta de empregos e afetou sobremaneira as condições de subsistência da população. A presença de trabalhadores pobres e com baixa qualificação gerou uma massa populacional desempregada ou subempregada residindo no centro urbano. Trata-se uma tendência dos projetos de grande escala na Amazônia, sobretudo das grandes hidrelétricas.


Tal fenômeno se dá por conta da criação de uma superpopulação relativa² no local de obras, que funciona como depósito vivo de trabalhadores para outros grandes empreendimentos ao longo do país. É, portanto, um acontecimento típico e estrutural, concernente às iniciativas de expansão da capacidade produtiva do capitalismo.


Condições como essa geram o terreno fértil para a presença de atividades ilegais, sobretudo do tráfico de drogas, que implicam diretamente no aumento da violência urbana . O fator Belo Monte não pode ser, portanto, desconsiderado no agravamento dessa situação e as responsabilidades do empreendedor hidrelétrico e do próprio Estado precisam ser devidamente avaliadas.


Existem, porém, outros fatores relacionados ao agravamento da violência que revelam uma tendência bem mais antiga e mais ampla do ponto de vista geográfico. Trata-se da expansão das facções do crime no território nacional, um componente estrutural que, associado ao fator Belo Monte, concorre para o atual quadro de violência.


O Gráfico 3 apresenta a evolução do índice de homicídio em Altamira, Pará e Brasil (a cada 100 mil habitantes) entre 1996 e 2017 (último ano de análise). No caso de Altamira, tem-se um crescimento contínuo a partir de 2008, acentuando-se no período entre 2009 e 2015 e atingindo o topo nacional, com índice de 105,2. A partir de então, tem uma queda em 2016, seguida de uma nova ampliação em 2017. Neste ano, o índice atinge 133,7, deixando a cidade na segunda colocação, perdendo apenas para Maracanaú-CE.

Gráfico 3 - Índice de homicídios (a cada 100 mil habitantes)


Comparando o gráfico 3 com os gráficos anteriores de emprego e população, ambos apresentam um crescimento importante entre 2010 e 2015, porém o índice de homicídios não baixa com a desmobilização de mão de obra de Belo Monte, pelo contrário, atingiu o seu maior nível. Isso ocorre justamente pelo acirramento dos problemas relacionados à estagnação econômica vivenciada por Altamira após a redução das atividades de Belo Monte.


Passemos, agora, a analisar os dados do Brasil e do Pará. No caso do Brasil, percebe-se uma variação mais sensível da taxa de homicídios em todo o período, alterando de 27,8 em 1996 para 31,6 em 2017, ou seja, em uma década o índice variou pouco mais de 13%. Tal característica, no entanto, não é um fator positivo, haja vista que o Brasil possui uma das maiores taxas de homicídios do mundo, mas em comparação ao Pará, por exemplo, revela um dado interessante.


No caso do Pará, a situação é diferente, pois entre 1996 e 2017 o crescimento foi de 329%. Ao se analisar a linha do estado, percebe-se que em 2005 a taxa de homicídios supera a Brasil e segue crescendo a partir de então. Esse é um dado importante, pois a situação do Pará segue uma tendência de "transferência" dos índices elevados de homicídios de estados do Sul-Sudeste, para estados do Norte-Nordeste, conforme indica o Gráfico 4.

Gráfico 4 - Índice do homicídios por Estado em 1996 e 2017


Essa "transferência" é algo que preciso destacar, pois não se trata da ampliação geral dos homicídios e sim de uma mudança no sentido sul-norte do país. Estamos tratando, então, de um fator conjuntural relacionado ao que podemos denominar de reordenamento nacional dos territórios do tráfico de drogas.


Esses territórios são controlados por diferentes facções do crime, muitas das quais já conhecidas e bem antigas no território nacional, como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), outras se estabelecem nos espaços regionais, como o Bonde dos 30, Comando Classe A (CCA), Família do Norte (FDN), dentre outros. Existe uma geometria complexa entre as facções, de modo que as regionais podem se articular ou não ao CV e ao PCC.


Dos anos 2000 em seguinte, um fator técnico torna essa territorialização nacional ainda mais ampla: a disseminação da comunicação via celular. A partir de então, não havia mais fronteiras para a ampliação do PCC em novos mercados da droga ao longo do país. Os espaços primordiais para o gerenciamento dessas atividades são os presídios, onde se tem processos contínuos de recrutamento.


Manso e Dias (2018), abordam a expansão da rede do tráfico como verdadeiras "empresas" e afirmam que "ao promoverem a conexão entre diferentes redes nos estados, os presídios também desempenham um papel estratégico. O PCC atacadista passa a distribuir para varejistas de todos os estados brasileiros, criando um mercado nacional de drogas interligado".


De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), o encarceramento no Brasil cresceu mais de cinco vezes entre 1995 e 2017, passando de 129 mil para 726 mil, respectivamente. Isso sem contar aqueles que apenas passam pelos presídios ao longo dos anos, somando milhões de pessoas. Muitos presos são obrigados a se filiarem como uma forma de proteção no recinto dos centros penitenciários.


Em meados de 2016, houve o "racha" nacional entre as lideranças do CV e do PCC, situação descrita em detalhes na obra de Manso e Dias (2018), que alterou significativamente a geometria do poder entre as facções no Brasil. Ocorre que, nas regiões Norte e Nordeste do país o ambiente não é polarizado e o palco de disputas é muito maior, pois existem várias facções já estabelecidas. O resultado é uma série de conflitos que ocorrem fora e dentro dos presídios, muitos dos quais resultando em graves chacinas.


O mais recente conflito ocorreu no Centro de Recuperação Regional de Altamira, onde 57 presos foram mortos. Foi a maior chacina ocorrida em presídios após o caso do antigo presídio do Carandiru. Segundo a própria Superintendência do Sistema Penitenciário (SUSIPE), o conflito se deu quando os internos filiados da CCA incendiaram as celas dos integrados ao Comando Vermelho.


O infográficos da Figura 2 mostra o conjunto de fatores que tiveram como consequência o aumento dos homicídios e a última chacina no presídio de Altamira.

Figura 2 - Infográfico dos fatores que conduzem à violência em Altamira-PA

Fonte: Elaborado por Miranda Neto (2019)


Com Belo Monte, o mercado interno de drogas se aqueceu e as gangues de bairro foram substituídas pelo agentes do crime organizado. Na reconfiguração desses territórios do tráfico, as disputas entre as facções e os acertos de contas fizeram aumentar consideradamente os índices de homicídios, resultando nos dados divulgados pelo IPEA.


Ao se tratar de "violência" apenas utilizando índices de homicídio, entretanto, o IPEA pode conduzir a uma interpretação equivocada sobre o que acontece em certas cidades do Brasil. Utilizando os dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado, por exemplo, onde os crimes são discriminados conforme o tipo, há situações muito similares se comparadas às cidades médias de Altamira, Marabá e Santarém.

Gráfico 5 - Índices por tipo de crime em Altamira, Marabá e Santarém - 2017


Com exceção dos índices relacionados ao homicídio doloso e ao furto, os demais dados relacionados à Altamira são muito similares (e até abaixo) aos de Marabá e Santarém. Isso significa que, se houve uma ampliação generalizada do crime, tal processo envolve as principais cidades médias do estado do Pará. Não se trata, portanto, de um evento concentrado em Altamira.


A especificidade de Altamira é, então, o fator Belo Monte, que produziu consequências sociais graves na realidade local. Esse componente, associado à disputa pelo mercado de drogas e as ações de extermínio entre facções rivais, gerou a contínua ampliação dos índices de homicídios divulgados pelo IPEA.


Por essa razão, não se pode desconsiderar o papel da Norte Energia (NESA) e suas responsabilidades diante da questão, sobretudo no que tange às condições de vida nos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUC), espaços que se tornaram estigmatizados com áreas violentas.


Ainda em relação ao papel da NESA, havia a previsão de entrega do Complexo Penitenciário de Vitória do Xingu, com 9 mil metros quadrados, que deveria ter sido inaugurado em 2016. A superlotação do presídio em Altamira agravou a situação e foi um dos fatores associados ao massacre de 2019.


As soluções efetivas para o problema, no entanto, estão para além de fatores localizados. Por um lado, a guerra às drogas no Brasil já se mostrou uma iniciativa ineficaz, que ajuda a produzir a violência endêmica. Essa violência atinge, sobretudo, as populações pobres e negras que residem em áreas segregadas da cidade. O encarceramento em massa, por outro lado, só tem agravado o problema, pois já se sabe que presídios são as centrais de filiação das facções, como bem analisam Manso e Dias (2018).


O aumento do efetivo policial e das ações ostensivas do estado no que tange à segurança, como os sistemas de inteligência e o uso de câmeras de vigilância, são apenas paliativos. É necessário que o Estado esteja presente em todas as dimensões da vida cotidiana, incluindo educação e saúde de qualidade, incetivo às práticas de esporte, lazer e, sobretudo, garantindo melhores condições de subsistência às famílias.


As ações, portanto, devem ser articuladas entre os diferentes poderes, esferas da administração pública e órgãos do governo. Porém, é necessário reconhecer o problema e atacá-lo em sua origem. Há diferentes situação no Brasil e em que os agentes do Estado relacionados à segurança pública desconsideram a complexidade dessa questão e preferem agir na ostensividade, na prisão arbitrária no incentivo ao encarceramento (mais prisões), desconsiderando os estudos e a produção científica sobre o tema. Infelizmente, essa é uma questão que nos coloca de volta à estaca zero.

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