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Foto do escritorJosé Q. de Miranda Neto

Abrindo as fronteiras da Etnografia urbana: entrevista com o Professor Dr. José Guilherme Magnani

Atualizado: 23 de nov. de 2020

Por: Laboratório de Estudos Populacionais e Urbanos (LEPURB)

Me. Francivaldo José da Conceição Mendes (UFPA/PPGEO)

Prof. Dr. José Queiroz de Miranda Neto (UFPA/PPGEO)


Baixe o arquivo em formato PDF aqui

 

Como referenciar essa entrevista:


MAGNANI, Guilherme. Abrindo as fronteiras da Etnografia urbana: entrevista com o Professor Dr. José Guilherme Cantor Magnani. [Entrevista concedida ao laboratório de Estudos Populacionais e Urbanos da UFPA]. MENDES; F. J. da C; MIRANDA NETO, J. Q. de. LEPURB, Altamira-PA, Nº 1, p. 1-25, novembro, 2020. disponível em: www.lepurb.com.br/post/entrevistamagnani

 

Imagem: Praia artificial da orla de Altamira-PA

Fonte: José Neto, Disponível no acervo LEPURB



Pensar a cidade em sua complexidade é, sem dúvida, um dos grandes desafios da ciência e uma tarefa que exige do pesquisador um conhecimento interdisciplinar. O professor José Guilherme Cantor Magnani reúne, com absoluto rigor metodológico, essas características, concentrando sua análise nos aspectos que envolvem o conceito de lazer em suas diferentes manifestações.


A entrevista a seguir foi gentilmente concedida ao Laboratório de Estudos Populacionais e Urbanos da Faculdade de Geografia da UFPA/Campus Altamira (LEPURB).


O LEPURB, a Faculdade de Geografia do Campus Universitário de Altamira e a Universidade Federal do Pará agradecem imensamente ao Prof. Magnani por nos conceder essa entrevista, ao qual será publicada integralmente em nossa página eletrônica: www.lepurb.com.br

LEPURB: [Francivaldo Mendes] Inicialmente, gostaríamos de agradecer-lhe pelo tempo dedicado a essa entrevista; certamente o LEPURB e a Universidade Federal do Pará ganham muito com isso. A ideia é estabelecer essas interlocuções com outros pesquisadores, com outras formas de entender a realidade, mas ao mesmo tempo, expor um pouco daquilo que debatemos aqui na Amazônia. Elaboramos algumas perguntas em caráter norteador, atentando para eventuais flexibilidades já que a ideia é aproveitarmos esse momento para construirmos um diálogo bem franco, sem muitos formalismos.


Prof. Magnani: Agradeço o convite de vocês. Eu apenas observei, em princípio, que seria inviável uma entrevista de forma escrita com 14 perguntas, pois percebi que iria escrever um artigo de 30 páginas, não é? Seria muito bom para vocês ... Mas vão ter que escutar, transcrever, editar, devolver-me para correção. Depois pode ir para publicação, combinado?


LEPURB: Certo. Combinado.


Prof. Magnani: Quando se escreve de uma maneira mais formal é necessário ser muito preciso. Dessa forma online, a entrevista fica um pouco mais solta e não quer dizer que fique menos precisa, pois podemos corrigir quando for transcrita e revisada. Então eu resolvi propor essa conversa de forma a poder encontrar-me com vocês, mesmo no contexto de pandemia e acho que mesmo assim o contato é pessoal. Por isso propus mudar a nossa ferramenta de encontro através dessa plataforma, mas as perguntas estavam muito bem direcionadas, realmente com foco na pesquisa. Ficou um esquema muito amplo. Agora é vocês que comandam a conversa: sabem que tenho um ex-orientando aí no Pará, o nome dele é Antônio Maurício, fez doutorado comigo em Antropologia na USP, agora é professor de História e atualmente faz pós-doc.


LEPURB: [Francivaldo Mendes] Sim, conheço. É o Maurício Costa. Estuda o circuito bregueiro em Belém[1], não é?


Prof. Magnani: Sim. Ele estudou grupos de brega na periferia de Belém, grupos de música popular, seu trabalho é muito interessante; essa foi a opção dele, vocês têm a suas.


LEPURB: [Francivaldo Mendes] Gostaríamos de começar por aquela questão de número um, que é para nossos leitores conhecerem o professor José Guilherme Magnani pelo próprio. Então queria que você fizesse uma apresentação da forma que melhor lhe conviesse.


Prof. Magnani: Não vou descrever uma trajetória muito longa, vocês têm meu currículo. De uma maneira breve, sou formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Depois fiz mestrado na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) no Chile, para onde me dirigi logo de formado, pois era líder estudantil e, como muitos na época, tive de sair do país, como exilado político: três anos no Chile e depois quatro na Argentina onde continuei trabalhando mais na área de semiótica, de linguística e, finalmente, voltando aa Brasil, fui fazer meu doutorado na USP; a professora que me acolheu foi Ruth Cardoso.


A professora Ruth Cardoso e a professora Eunice Durmam foram duas mestras que valorizo muito porque na verdade, pioneiras, abriram o Departamento de Antropologia da USP para a Antropologia Urbana. Até então, a Antropologia no nosso departamento era bastante focada na etnologia indígena e no tema dos imigrantes, mas a periferia de São Paulo, que emergia como um cenário interessante de pesquisa não era muito estudada e foram elas que iniciaram seu estudo. Fiz meu doutorado sob orientação de Ruth Cardoso com um tema que já entrava na questão do lazer, o circo-teatro. Não sei se vocês conhecem, mas daí saiu meu livro chamado Festa no Pedaço[2] e foi um trabalho inovador porque na época poucos davam importância para a questão da festa, do entretenimento, da cultura popular, em suma. Importante mesmo, para as ciências sociais, era a política: o sindicato, os partidos políticos os movimentos sociais. Agora, circo-teatro, era um tema meio trivial, não é?


Estudei o circo porque no meu ponto de vista era uma forma de entender o dia-a-dia dos trabalhadores de São Paulo, vindos do Norte, do Nordeste, do interior de São Paulo. Eles estavam constituindo um modo de vida na metrópole. E o entretenimento, a festa, as celebrações, numa perspectiva bem antropológica, são constitutivas do seu cotidiano: era então um trabalho pioneiro, abriu um caminho interessante porque pude aprender com eles o que é fazer uma etnografia urbana. Claro que fui com um projeto de pesquisa, pois era condição para a pesquisa de doutorado e uma das questões, na época era a discussão se a cultura popular é conservadora ou progressista. Aí eles me disseram, com outras palavras: “Professor, pouco importa se a cultura popular é progressista ou conservadora, o circo-teatro é um bom lugar onde a gente se encontra. E a gente pode frequentar porque tem teatro”.


Notem que fato curioso: os atores sociais ensinando um caminho ao antropólogo. Havia então duas alternativas pela frente: continuar com a linha definida no meu projeto inicial, que tinha financiamento da FAPESP, ou então seguir o que eles me sinalizavam. Preferi segui-los. E me apontaram um caminho muito interessante dizendo: “Olha, o lugar onde a gente se encontra na periferia é o nosso pedaço”. É daí que surgem as minhas categorias, a primeira delas foi a do pedaço, depois a mancha, o circuito, as categorias que até hoje eu e meus orientandos empregamos nas pesquisas.


Então essa é minha trajetória. Atualmente estou aposentado da USP, mas continuo orientando no mestrado, no doutorado como professor sênior, tenho várias pesquisas em andamento que estão abrindo diversos campos para os alunos. Então sigo trabalhando, só que agora saindo um pouco para além do ambiente meramente acadêmico e respondendo a demandas da sociedade. Depois eu até posso contar a vocês sobre duas ou três pesquisas que a gente está fazendo, com atores sociais para os quais a etnografia é uma ferramenta útil para entender a dinâmica que está acontecendo em seus contextos. Isso é, em breves palavras, minha introdução para terem uma ideia, digamos, da trajetória.


LEPURB: [Francivaldo Mendes] Professor, sendo orientado pela professora Ruth, pode-se dizer que você teve a forte influência da Escola Paulista de Sociologia, de Florestan Fernandes, Octávio Ianni?


Prof. Magnani: Sim, essa escola, a ELSP, tinha uma relação com a Escola Sociológica de Chicago, uma referência para a Antropologia Urbana, pois seu tema era constituído pelas transformações e problemas que essa cidade estava enfrentando, nas décadas de 1920 e 1930, em função da massiva imigração estrangeira (e também interna). A presença desses imigrantes europeus, sem conhecer a língua, os costumes, em condições precárias de moradia foi considerada como “patologia social” e encarados do ponto de visa de uma “ecologia humana”, como plantas competindo por espaço, recursos etc. O trabalho de campo realizado em busca de entendimento e soluções estabeleceu uma tradição que, em nosso caso, foi seguida em São Paulo pela então Escola Livre de Sociologia e Política, com seus famosos “estudos de comunidade”. Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Darcy Ribeiro, Sergio Buarque de Hollanda são alguns dos pesquisadores formados ou influenciados nessa tradição que, no caso paulistano voltou-se para o estudo da passagem de uma sociedade rural para a sociedade urbana.


LEPURB: [Francivaldo Mendes]: Nesse contexto, podemos citar a obra e o pensamento de José de Souza Martins?


Prof. Magnani: Em Viola Quebrada, um belo texto de José de Souza Martins, que costumo citar, traz a perplexidade de um caipira na metrópole paulista com sua moda de viola “Bonde Camarão”, ao entrar nesse novo meio de transporte


LEPURB: [Francivaldo Mendes]: E hoje, professor? Eu pergunto porque você fez dois recortes: o primeiro sugere uma forma metodológica de compreender o espaço a partir da concepção teórica. A outra, refere-se a uma incompatibilidade entre essa primeira perspectiva e aquela que desprende da sua ida ao campo. E hoje, como estão centralizadas essas questões a partir da USP, tendo por base esse recorte apresentado?


Prof. Magnani: Sou coordenador, atualmente, com a prof. Silvana Nascimento, do Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana da USP (LabNAU). Desde final dos anos de 1980, quando me tornei professor na USP, formei um grupo de alunos para poder pensar justamente esses novos temas que a periferia e a dinâmica urbana nos colocavam e assim fomos desenvolvendo muitas pesquisas, fazendo experiências em vários lugares tendo a cidade de São Paulo como laboratório, entre outros contextos, claro, como foi o caso de Antônio Mauricio que você citou. Nós nos diferenciamos um pouco da perspectiva macro de disciplinas como sociologia, demografia, urbanismo, etc. quando tomam a cidade em sua totalidade. Na tentativa de captar suas funções – não há como não lembrar aqui, de Le Corbusier[3] e sua visão da cidade modernista com as quatro célebres funções: o trabalho, o lazer, a circulação e a moradia. A cidade tinha que ter as funções todas.


Mas, para o olhar etnográfico, a perspectiva é outra: como é que eu chamei isso? Um olhar “de perto e de dentro”, que se contrapõe ao olhar “de fora e de longe”. Não que eles se oponham – antes, complementam-se, mas o olhar “de longe e de fora” é aquela visão macro que prioriza a cidade em seu conjunto. E o olhar “de perto e de dentro” é o olhar etnográfico, que vai observar os atores, em determinados cenários e identificar as regras de seu comportamento nesses cenários. Se nos remetermos às pesquisas clássicas da Antropologia, fica claro que os pesquisadores tradicionais sempre tiveram como seu recorte privilegiado aquelas pequenas comunidades, que hoje chamamos sociedades de pequena escala. São, por exemplo, os povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, sociedades rurais isoladas etc., com as quais o antropólogo entra em contato por meio da “observação participante”. Costumo frisar que há uma espécie de tentação, a “tentação da aldeia”. Explico: como comparar uma comunidade dessas com São Paulo por exemplo, com seus 12 milhões de habitantes? Uma aldeia que cresceu demais? Como é que se aplica, aí, a observação participante? Faço uma aproximação com Evans-Pritchard[4], quando dizia que, ao abrir a porta de sua barraca, podia ver o que acontecia no acampamento ou aldeia dos Nuer e todo seu tempo era gasto em sua companhia; mas quando o antropólogo urbano abre a janela de sua quitinete em São Paulo, ele vê o quê? A empena cega do edifício em frente...


A “tentação da aldeia” é, ou considerar a cidade contemporânea como uma aldeia que cresceu demais, para além dos limites, ou ficar nos limites de sua “aldeia”: o terreiro de candomblé que estuda, ou o tempo evangélico, a torcida organizada de futebol, um bairro específico. O antropólogo pode até ficar especialista naquele terreiro, naquele bairro, ou centro cultural. Mas nestes casos, sua observação participante o isola, ele perde a dimensão macro da cidade. A saída para tal impasse é, sem dúvida, começar com o olhar “de perto e de dentro”, escutando os atores sociais, mas ao mesmo tempo lembrando que eles estão dentro de um contexto mais amplo.


A partir daí posso até contar para vocês algumas pesquisas que fiz ou orientei nessa perspectiva, que me permitiram entender a dinâmica urbana de maneira a não ficar refém de um recorte especifico, nem em generalidades sobre a cidade em sua totalidade. A cidade é inventada pelos atores sociais, os citadinos.

Então, voltando à pergunta que você fez, a saída é trabalhar nessa dupla perspectiva, complementando o olhar “de perto e de dentro”, que é o lugar da etnografia, mas sem esquecer que as diferentes práticas ocorrem num contexto mais amplo: a própria cidade.


LEPURB: [José Neto]: Nós pensamos que cada intelectual tem as suas referências, os seus clássicos, aquelas obras que mais influenciaram a sua obra. Como é que você pensa, por exemplo, hoje no conjunto da sua formação, a influência desses intelectuais do passado e qual a profundidade desses na sua trajetória?


Prof. Magnani: Bom, realmente é um conjunto grande de intelectuais, mas alguns, como você realça, marcam nossa trajetória. Desde meu tempo de mestrado no Chile um desses autores foi Lévi-Strauss, com o estruturalismo, na pesquisa que fiz sobre “Los Cuentos Campesinos como produtos ideológicos”. Eu estava fazendo meu mestrado lá na época do governo da Unidad Popular e o meu orientador era Emilio de Ipola. Ele sugeriu que eu trabalhasse com a questão da cultura e ideologia. Então fui a campo, literalmente, pois trabalhei com pequenos proprietários rurais com sua ideologia, melhor dizendo, com manifestações do plano do simbólico. Eles contavam lendas, contos, relatos mitológicos e eu registrei e analisei esse conjunto a partir da semântica estrutural. Então, ao mesmo tempo a perspectiva era da semântica com autores como A.J. Greimas e, ao mesmo tempo, com a perspectiva do estruturalismo levistrassiano; que de certa forma me acompanham até hoje. Por exemplo, no meu último livro, chamado Da Periferia ao Centro: trajetórias de pesquisa em Antropologia Urbana[5], faço uma alusão a Tristes Trópicos[6]. Vocês conhecem o livro, com as memorias e reflexões de Lévi-Strauss do tempo em que esteve em São Paulo para lecionar na USP. Ele tinha como horizonte o que todo antropólogo estrangeiro queria: o índio; imaginava que em volta de São Paulo havia tribos indígenas.... Então, como não os encontrou, da maneira como imaginava, fez o que denominou de “etnografia dos domingos”: com sua esposa, Dina, e com Mário de Andrade, saíam nos fins de semana para a periferia de São Paulo observar as festas populares. Mas, no fundo mesmo ele queria era estudar povos indígenas e então viaja para o sertão, ao encontro dos Nhambiquara, entre outros. Tristes Trópicos, porém, ficou como uma referência.


Por outro lado, há a questão da etnografia, tout court, já citada, a partir das pesquisas de Bronislaw Malinowski no litoral sul da Nova Guiné, as ilhas Trobriand. Malinowski é um dos primeiros a começar com essa perspectiva de ir a campo, conversar e entrar em contato com os seus sujeitos de pesquisa, morar com eles, viver seu cotidiano. Tal como Evans Pritchard, que trabalhou com os Nuer, povo nilota, ele é da escola britânica. Poderia citar ainda Marcel Mauss, da escola francesa, e os mais recentes, Clifford Geertz, George Marcus, Marshall Sahlins....


E claro, atualmente, um autor talvez mais conhecido por vocês, David Harvey, que traz uma interessante reflexão sobre a pós-modernidade. Seu trabalho sobre as cidades contemporâneas foi um marco para mim ao abrir uma perspectiva muito importante, um ponto de vista marxista de trabalhar a cidade com a ideia da crítica do capital e como que a cidade se remodela. Então, dentre vários autores, são esses a quem recorro, para poder manter ainda uma certa tradição na minha perspectiva. Claro que há muitos outros: poderia citar Bruno Latour, Marilyn Strathern. Tim Ingold. Estes já são mais contemporâneos e você perguntou pelos clássicos.


LEPURB: [Francivaldo Mendes]: Professor, muito dos autores que você citou, quase todos são da antropologia clássica, não é? Especialmente Malinowski, que tem um trabalho certamente um dos mais importantes da antropologia moderna. Eu não sei se foi um texto seu ou de outro antropólogo, que iniciava fazendo uma referência à quando Malinowski chegava no Pacífico ocidental e o barco dele saía? Não sei se foi você que fez.


Prof. Magnani: Foi!


LEPURB: [Francivaldo Mendes]: Nesse sentido, ao contrário de Malinowski, quando o pesquisador já pertence ao espaço social, tem relações interpessoais densamente constituídas, quais caminhos deve seguir? Procuro aqui relacionar essa hipótese ao texto que mencionei anteriormente de sua autoria.


Prof. Magnani: Sim, esse texto está no livro Os Antropólogos, da Editora Vozes, pois eles pediram para escrever um verbete, um capítulo sobre Malinowski. E eu começo justamente assim, ele acena para o navio que está zarpando e diz mais ou menos isso: “não tenho alternativa a não ser começar a pesquisa porque não tem homem branco para conversar, não sei a língua, o que vou fazer?” Começar a etnografia!” A etnografia que ele tem de encarar é num contexto completamente diferente do seu, língua, instituições políticas, costumes....


A partir daí começa-se também a trabalhar com a antropologia que em inglês é conhecida por at home: antropologia em casa. Como é que se trabalha com a sua própria cultura? Então, há uma discussão muito interessante entre Gilberto Velho e Roberto da Mata, sobre a alternativa em que o antropólogo clássico tendo de transformar o exótico em familiar e o antropólogo, na sua cultura, vai do familiar ao exótico, que é a ideia do estranhamento. Tem-se de produzir o estranhamento, metodologicamente, senão corre-se o risco de fazer uma espécie de antropologia de si mesmo, tipo autoanálise.


Como é que se produz o estranhamento na própria cultura? Esta é uma questão epistemológica.... Quando as nossas culturas viram objeto de pesquisa, em vez de buscar o “outro” longe, a gente busca esse “outro” que está ao nosso lado. Resumindo, este é um dos desafios que a antropologia contemporânea deve enfrentar.


LEPURB: [Francivaldo Mendes]: Correto. Já entrando mais um pouco no campo do lazer, professor, a gente tem, claro, como em todo campo de conhecimento, vários teóricos. Mas no lazer ou na dita sociologia do lazer, nós temos o Dumazedier na França, na Inglaterra o Parker e enfim, na América Latina nós temos outros também, muito bons teóricos que, em síntese, produziram uma teoria bem elaborada num tempo, especialmente ali na segunda metade do século XX, em que buscaram histórica e conceitualmente determinar uma ocorrência. O que eles estão chamando de lazer, inclusive há alguns mais modernos agora, como o professor Mascarenhas, fazendo uma diferenciação entre o lazer enquanto ato moderno, proveniente da revolução industrial, e práticas anteriores à evolução industrial que ele não considera como sendo lazer. Então há essas características do campo teórico, não é? Dessa forma, sem querer discutir o mérito dessas produções teóricas, como que o senhor enquanto pesquisador visualiza essas questões de ordem teórica e metodológica em relação à expressão do lazer enquanto prática humana?


Prof. Magnani: Dos autores que você citou um dos mais importantes é Joffre Dumazedier que fez a pesquisa nos anos 1960 na França e é uma referência para quem estuda lazer; aqui no Brasil podemos citar Nelson Marcellino, atualmente aposentado, também tem um trabalho importante. Na verdade, eu tenho bastante contacto com o pessoal da Educação Física na UNICAMP, na UFMG, em Curitiba (UFPR) e com a equipe da EACH/USP. (Escola de Artes, Ciências e Humanidades); assim compartilho com eles eu a contribuição da etnografia, como é que este método ajuda a pensar o tema do lazer.


A primeira tarefa é justamente desconstruindo o próprio conceito de lazer. Sem ir muito longe, no histórico do termo, a questão do lazer era muito associada ao tempo do trabalho, trabalho versus lazer, no contexto revolução industrial: trabalhava-se a semana inteira, passava-se o fim de semana descansando ou com algum entretenimento para repor as forças e continuar sendo explorado na semana seguinte. Essa era em resumo a ideia inicial da função do lazer. E os teóricos começam a perceber que o que se faz durante o lazer, pouco interessava para o sistema: para este, o que importa era que o trabalhador recuperasse as forças físicas e psíquicas para continuar trabalhando. Contudo, esse tempo e suas formas de ser preenchido começavam a despertar interesse como um tema em si.


Mas a ideia de um tempo “livre”, frente ao tempo “obrigatório” continuou como dicotomia porque supõe-se que o trabalho é difícil, é tedioso, cansa e a hora do lazer é quando a pessoa se libera, não faz nada, descansa e tal. Essa dicotomia vem acompanhando de certa maneira as pesquisas. Porém, as que temos feito mostram, por exemplo, não haver essa oposição radical A propósito, há uma historinha que conto em um de meus artigos, mais ou menos assim, para exemplificar. Acho que vocês devem até ter lido em algum lugar. É a história de um escritor que estava trabalhando em seu livro e foi convidado por um amigo para ir ao sítio dele e lá, tranquilo, continuar a escrever. Quando chega lá, encontra uma rede na varanda e nela se deita, começa a pensar sobre o que vai fazer no segundo capítulo: quais são os personagens, qual é a trama e tal. Ele estava absorto naquilo quando passa o caseiro e comenta: “Descansando, hein, doutor?” Ele respondeu: “Não, trabalhando”. Depois de um tempo, já com novas ideias esboçadas, deu uma espreguiçada e decidiu levantar da rede: andou um pouquinho por ali e viu num canteiro uma enxada, empunhou e começou a capinar, assim, mais ou menos, desajeitado. O caseiro passa de novo e observa: “Trabalhando, hein, doutor?” Ele respondeu: “Não, descansando...”


Quando se está trabalhando, ainda mais hoje em tempos de pandemia, lazer e o trabalho terminam mantendo vínculos muito estreitos. De maneira geral é possível no trabalho ter momentos de lazer e no de lazer sempre há alguém trabalhando para proporcionar o lazer. Talvez eu possa contar, não sei se agora ou mais tarde, lances de uma pesquisa que fiz com meus alunos em nove unidades do SESC na cidade de São Paulo. Foi sobre o SESC, não sei quantas unidades vocês têm em Belém, Altamira acho que não tem, não é?


LEPURB: [Francivaldo Mendes]: em Belém tem uma Unidade, perto da Doca.


Prof. Magnani: Em São Paulo, nós trabalhamos em nove unidades na cidade e mais cinco no interior e a pesquisa durou dois anos. Uma coletânea - Lazer de Perto e de Dentro: uma abordagem antropológica - foi publicada pela editora do SESC/ São Paulo com alguns resultados do trabalho.


São muitos os casos aí relatados e entre inúmeros episódios destaca-se um, quando os pesquisadores observaram uma menina sentada na arquibancada de uma quadra, olhando para cima. Um deles se aproximou e perguntou “E aí, tudo bem com você? O que que está fazendo? Ela respondeu: “Nada!”. Ele insistiu: “Como assim, não está fazendo nada? Mas o que mesmo que você veio fazer aqui?” – “Eu vim aqui fazer um monte de nada, pô!” Se um funcionário soubesse disso iria ficar preocupado, iria dizer que o SESC oferece tanta coisa para fazer e vem essa moça para não fazer nada aqui... Pois bem, para ela o SESC era um lugar que a acolhia para não fazer nada. Essa era sua forma de lazer, de passar o tempo livre.


Outro tema interessante no circuito dos SESCs em São Paulo é a unidade de Itaquera, próximo ao estádio de futebol Itaquerão. É uma unidade campestre, na zona leste, região mais na periferia, tem uma imensa piscina, que é o que mais atrai as pessoas. Ao fazer a pergunta “O que você veio fazer aqui”? Escutamos: “Vim tirar um lazer”. Eles usam o verbo “tirar”. Quer dizer, o lazer não existe pronto: ele está sendo feito, a gente vem fazer lazer, A conclusão, então é: em vez de classificar o lazer como substantivo, ele é entendido como verbo. Existe uma atuação do ator social produzindo, de um modo que só com a etnografia se pode descobrir, essa forma de encarar o lazer.


Diferentemente de uma visão convencional para a qual o lazer é futebol, festa, show, caminhada, passeio etc. Entretanto, se de um ponto de vista do ator social o lazer não está pronto, na verdade é inventado; não quer dizer que não se possa trabalhar com essas modalidades convencionais de lazer, a pesquisa no SESC mostrou que sim, ele é um lugar de diferentes modalidades de lazer, mas os frequentadores têm agência, reinventam e essa, acredito, é uma das contribuições da etnografia: ao olhar de perto e de dentro começa-se a perceber as sutilezas emergindo. Então, é um pouco por aí… uma primeira explicação que posso te fazer sobre a questão do lazer na perspectiva da etnografia. Não sei se minha resposta esclareceu a questão...


LEPURB: [Francivaldo Mendes] São as notas desestabilizadoras[7] , não é?


Prof. Magnani: Isso


LEPURB: [Francivaldo Mendes] De fato esse é um texto em que ele procura desconstruir a ideia do mito de origem do fenômeno do lazer [nesse momento o entrevistador Francivaldo Mendes se dirige a José Neto].


Prof. Magnani: Exatamente


LEPURB: [José Neto] Eu vou deixar o Francivaldo mais à vontade, sou mais um interlocutor dessa atividade que o Francivaldo tem feito aqui [no Pará]. Então, vou deixar com ele as perguntas principais. Acho que poderíamos adentrar, mais adiante, em algumas questões que envolviam a Amazônia que acredito merecerem destaque.


LEPURB: [Francivaldo Mendes] Vamos lá! Professor, quando a gente perguntou sobre os autores, o senhor falou que um dos principais autores que lhe influenciaram era o antropólogo Lévi-Strauss. Aí eu fiquei preocupado, pois fizemos uma pergunta logo abaixo, mas eu queria ouvir de você essa história de tempo que a gente tem discutido. Você mencionou que às vezes não é só a gente considerar a dicotomia entre o tempo do trabalho e o tempo do lazer. Inclusive eu li um texto, eu acho que está nesse livro [obra anteriormente mencionada], que são duas etnografias uma no Amazonas [viagem de barcos e outra de caminhoneiros]. Então o tempo do trabalho vai se entrecruzando com o tempo do lazer, porque a dinâmica que ali está estabelecida não permite essa cisão mais evidenciada, como na fábrica. Então você entra no barco, qual é a noção de tempo? É a próxima cidade. Então eu vou de Parintins a Manaus e naquele translado tenho várias questões de ordem interpessoal acontecendo… a mesma coisa é na boleia do caminhão, não é?


Prof. Magnani: Isso


LEPURB: [Francivaldo Mendes] Ele vai ouvindo rádio, vai se comunicando com o pessoal que vai à frente, passando instrução ao pessoal que vem atrás, se relacionando com pessoal dos postos. Então é toda uma dinâmica. Mas, assim, do ponto de vista mais teórico tem um autor: o professor o Domenico De Masi, cujas algumas questões eu e o professor Marcellino não concordamos muito. Mais o Professor Marcellino do que eu, até porque estou chegando agora, eu apenas leio. Vou explicar o porquê das minhas restrições a De Masi. Inicialmente ele estabelece uma espécie de categorização, considerando essa ideia do “desenvolvimento”, desenvolvimento numa perspectiva econômica, especialmente a partir do aporte tecnológico ou das tecnologias da informação. Desse contexto, para De Masi, é mais avançada, mais desenvolvida, a sociedade que conseguir estabelecer um aporte tecnológico maior ou melhor. De modo análogo, é menos desenvolvida aquela sociedade que não consegui incorporar esse instrumental tecnológico a sua dinâmica. Então, ele diz que a forma de gestão e fruição do tempo livre está diretamente ligado ao desenvolvimento das nações cujo fundamento maior sãos as tecnologias. O então “ócio criativo’, condiciona-se ao avanço tecnológico e a sua incorporação na dinâmica social onde, a tecnologia é proporcional à quantidade do tempo livre de que as pessoas disporão, chegando a esse ideal por ele denominado: “sociedade do ócio criativo”. Eu considero essa concepção linear e até um pouco ingênua, se é que posso tributar tais características a um intelectual da relevância de Domenico De Masi. Eu acho, contudo, que não é por aí, mas eu queria ouvir de você o que pensa dessa categorização que ele faz de avanço tecnológico, desenvolvimento e tempo livre?


Prof. Magnani: Certo. Concordo com você. Eu também tenho uma crítica ao famoso “ócio criativo” do Domenico De Masi, porque ele tem uma perspectiva que é “europeizante”, quer dizer, mais do ponto de vista de países desenvolvidos: a ideia de que a tecnologia, ao substituir o trabalho, vai deixando mais tempo livre para as pessoas. Mas vejam só, se consideramos um caso bem específico, de povos indígenas, para contrastar; quando o indígena está caçando e circulando pela floresta, ele está trabalhando ou fazendo lazer? A caminhada dele em busca da caça, ou ficar imóvel durante a pescaria¬ – é lazer ou é trabalho? No caso de grupos camponeses, também ocorre algo parecido: o trabalho em mutirão, por exemplo, com seus os cânticos e gestos rituais, como classificar? Ritual, trabalho, lazer? Então, só do ponto de vista da etnografia é que podemos trabalhar com isso, o que nos leva a priorizar os verbos, e não os substantivos; situações como essas também ocorrem em contextos urbano-industriais. No caso de De Masi, como trabalha com a ideia do quanto mais desenvolvimento, menos trabalho, porque a máquina substitui o homem, conclui-se de uma maneira mecânica que se tem mais tempo para não fazer nada ou para fazer as coisas que o sistema oferece: mais consumo.


Nas sociedades tradicionais, em seu modo de vida característico, lazer (se é que se pode empregar aí esse termo) e trabalho, na verdade, estão imbricados. Não significa que não haja também momentos de descanso. E as celebrações? supõem uma trabalheira, às vezes o ano todo... Preparar, ensaiar, colher doações, fazer as novenas, há muito o que fazer…


Eu coordenei, há algum tempo, uma pesquisa na cidade de Santana de Parnaíba, em São Paulo, para estudar a celebração de Corpus Christi. No dia da festa a cidade está toda decorada, com aquele famoso tapete por onde passará a procissão, cuja elaboração supõe um ano inteiro de coleta de cascas de ovo, borra de café, serragem que, por sua consistência e coloração, vão servir para elaborar os desenhos alusivos – anjos, cenas bíblicas, personagens da cidade.....Deu um imenso trabalho para fazer e em minutos é totalmente destruído pela passagem da procissão. Trabalho? lazer? devoção? Particularmente acho que se deve encarar o lazer dentro de uma unidade mais ampla, chamada “modo de vida” e não simplesmente do ponto de vista do sistema. Por isso concordo mais com você que essa perspectiva do De Masi está muito atrelada a uma ideia dicotômica, própria do funcionamento do sistema capitalista.


LEPURB: [Francivaldo Mendes] perfeito! Professor, outra questão que tem me trazido dúvida. Eu fico me perguntando, converso com o Prof. José Neto, as vezes a gente conversa e ele fala: “rapaz tu tens que ver essas questões… eu sou do urbano, sou da cidade” [referindo-se à Geografia Urbana]. Eu confesso que às vezes trago dor de cabeça para o Prof. Neto. Mas é uma dor de cabeça boa, não é? Que a gente aprende junto…


Prof. Magnani: Orientador é para isso, não é, Neto?


LEPURB: [José Neto] É… para aprender, desaprender e ensinar…


LEPURB: [Francivaldo Mendes] A gente começou falando bem resumidamente dessa ideia da fragmentação da ideia do lazer, que é posterior à industrialização e que nasce com ela e de práticas que não estão capituladas neste posicionamento analítico categorial, por assim dizer. O professor Fernando Mascarenhas, que é tributário dessa ideia do lazer como ato moderno, considera como sendo predominante a forma mercadoria do lazer. Ele se utiliza de um neologismo, “mercolazer”[8] , para reiterar essa mercantilização das práticas do lazer. Para este autor até os anos de 1990 vigorava o que ele denominou de “subsunção formal”, que é quando o lazer enquanto prática assume a função de “salário indireto’. Nesse contexto, o lazer está ligado à ideia da produção do trabalho na lógica capitalista. Pois bem, diz Mascarenhas que dos anos 1990 em diante, passa a ocorrer o que ele chama de “subsunção real”, que é a predominância da lógica mercadocêntrica em relação ao lazer. Particularmente eu não consigo ver apenas essas duas demarcações, cujo sentido remete a uma cobertura absoluta da dimensão mercantil. Eu acho que o lazer deve ser considerado a partir da sua prática orgânica e que a gente não consegue, ou não deveria, generalizar. O que eu quero dizer é que existem singularidades, em diferentes espaços e em diferentes tempos. Portanto, eu considero arriscado a gente fazer essa generalização, mas é um ponto de vista meu e queria que o senhor comentasse a respeito. Não necessariamente sobre essa tese do professor Mascarenhas, mas sobre essa visão que eu considero predominar nos estudos sobre lazer.


Prof. Magnani: É uma linha basicamente de orientação sociológica que encara a oferta do lazer como um produto e realmente implica uma perspectiva do consumo. Tem-se aí um rol imenso de possibilidades do chamado lazer, no tempo livre. Mas é uma visão que denomino de “olhar de fora e de longe”. Se se pesquisar, por exemplo, um show com milhares de pessoas, ao fazer uma observação participante, será possível identificar, em parte, os diferentes atores sociais envolvidos ali: as pessoas que trabalham para produzir o espetáculo, as que vão lá para curtir, as que vão levar a família, ou seja, o uso que se tem do lazer não é unilateral nem único. São várias perspectivas e é necessário ir ao interior dele, dá até pra classificar a quantidade de ofertas que o sistema oferece; no entanto, nessa perspectiva que venho desenvolvendo tem-se outro ponto de vista, não é? Na verdade, essa forma de lazer como mercadoria é um aspecto. Eu acho que existe mesmo, o sistema produz formas estereotipadas do que as pessoas consomem como lazer, mas isso não quer dizer que as pessoas consomem do jeito que o sistema impõe. Então muitas das vezes quando as pessoas vão, por exemplo, a uma festa ou a um bar ou manifestação, a maneira como desfrutam daquilo é de seu um jeito. Não é igual para todos.


Então, se se tomar o lazer como mercadoria, como se essa fosse a forma dominante, seria um jeito estereotipado de desfrutar. Não é só desse jeito não, há várias formas a partir, digamos, da maneira como os atores sociais o fazem. Por isso afirmo que ator social tem “agência” a respeito, mesmo sobre a mercadoria que ele consome. Dá até pra perceber que há realmente uma re-produção nessa forma-mercadoria de lazer, pois a maneira como é desfrutada é diferente, então pode-se comparar as duas coisas. Se ficamos presos a visão dada pelo sistema, muito fechada, muito estática, perde-se a perspectiva na antropologia que é perceber justamente como são os padrões culturais daqueles que estão, vamos dizer, em contato com as práticas, que são muito diferentes. Também acho que é uma visão que tem que ser levada em conta, porque realmente o sistema produz. Agora, como é consumido e como é vivido, há maneiras diferentes, não é? Então, também tem que se levar em conta e desconfiar um pouco. Essa é a proposta da etnografia.


LEPURB: [Francivaldo Mendes] Certo! Professor José Neto, você quer comentar alguma coisa? Fique à vontade, professor.


LEPURB: [José Neto] Acho que temos algumas questões sobre a Amazônia que seriam relevantes destacar.


Prof. Magnani: Pode ser. Vejam que o Núcleo de Antropologia Urbana da USP tinha como laboratório uma grande metrópole, São Paulo, com toda sua diversidade cultural. Vocês conhecem São Paulo, sabem dessa imensa diversidade, não só cultural como econômica, social, etc. É uma megametrópole. Eu fui convidado por uma colega, etnóloga da USP, a professora Marta Amoroso, para fazer parte de uma pesquisa, há uns dez anos mais ou menos, no quadro de um programa chamado PROCAD (Programa Nacional de Cooperação Acadêmica/CAPES). Seu objetivo é estabelecer intercâmbios entre um programa de pós-graduação consolidado e um que está começando: neste caso, entre o PPGAS da USP e o da UFAM (Universidade Federal da Amazônia). Eu e meus alunos não tínhamos experiência com povos indígenas, e nossa participação no programa foi a de estudar a presença deles na cidade. Assim, mesmo sem conhecer Manaus, começamos a etnografia com caminhadas para reconhecê-la. O primeiro grupo que encontramos foram os Ticuna, numa incursão ao Mercado Municipal. Entramos em contato, conversamos, nos apresentamos e perguntamos se podíamos visitar a aldeia deles na cidade. A resposta foi não...: “Muitos de vocês vêm para cá, fazem pesquisa, publicam tese e depois nunca mais voltam”. Bom, desculpem, não está mais aqui quem falou.... Mas não desistimos, continuamos caminhando e observando. Dali uma um tempo, encontramos uma freira – não lembro mais como foi o contato: “Ah, vocês querem encontrar povos indígenas aqui? Eu conheço uma aldeia chamada Yaperehy´t, do povo Sateré-Mawé, lá no bairro da Redenção”. Ufa, que bom, a gente vai lá e tal... ela deu o endereço e nós fomos. Quando chegamos, era um bairro de periferia, o tuxaua Moisés nos recebeu, apresentamo-nos, dissemos quem tinha indicado. Ele a conhecia e convidou: “Podem entrar!”


Ele começou mostrando um lugar onde guardava coisas importantes da aldeia. Numa cabana, mostrou uma tese de mestrado sobre Sateré-Mawé e, em outra prateleira, troféus de futebol. Olhamos admirados: pensamos que ele iria falar sobre cosmologia, as práticas rituais e ele mostra troféu de futebol e tese de mestrado! E aí a questão do futebol já apontou para o lazer: “A gente participa de uma liga de futebol que é o Peladão”. O Peladão é um torneio patrocinado pelo jornal de Manaus, com participação de times de idosos, de mulheres, de adultos, de crianças e de índios. Logo começamos a conversar com eles sobre o tema e apareceu uma pista... Notem como a etnografia não deixa passar nada....


Uma situação absolutamente inesperada, a partir da qual foi possível perceber como os Sateré-Mawé e outros indígenas participavam desse torneio de futebol na cidade de Manaus. E aí começaram a aparecer os detalhes porque não era apenas um entretenimento: era também um lugar de discussão política, porque para jogar lá era preciso provar ser índio. E como é que se prova ser índio? Mostrando a carteirinha da FUNAI. Mas alguns deles não tinham. Conversamos com uma moça que, interessada em jogar futebol, era casada com um branco e, portanto, não era considerada mais índia “autêntica”. Como ela fez? Foi à aldeia conversar com a avó, fazer a genealogia que provasse a origem indígena. Para quê? Para poder jogar futebol!. Um jogo de futebol despertou nela a ideia de ir até a terra indígena para reconstituir um pouco a sua ancestralidade. E aí começou a aparecer um campo muito profícuo sobre a presença indígena ligada inicialmente à promoção de uma forma de lazer, convencional, mas que se abre e mostra uma forma de se apropriar da cidade. Isso foi um exemplo.


Esse foi o tema da dissertação de Rodrigo Chiquettto. O outro foi tratado por é Ana Sertã, com as mulheres que faziam artesanato; também é do senso comum a imagem de índios vendendo artesanato típico. Mas Ana começou a conversar com as mulheres da Associação das Mulheres Sateré-Mawé,(AMISM). E foi até à a casa delas, convidada para ver como é que elas produziam os colares e pulseiras. Enquanto faziam o artesanato, conversavam, cuidavam da casa, contavam causos. Discutiam como tal semente servia para tal pulseira, etc.... e, como vendem para fora, para branco, diziam mais ou menos o seguinte: Bom, os Sateré tem um contato inclusive com a Itália para vender para os europeus mas tem que ser de um certo jeito. Para vender em São Paulo é uma outra estética devido às novelas, mas se a gente vai fazer artesanato para os nossos parentes em Ponta Alegre, é de outra maneira. Escutando as conversas enquanto elas trabalhavam, sobre as diferenças e usos do artesanato, Ana descobriu o tema de sua dissertação: para conseguir as sementes, as mulheres tinham de descobrir onde encontrá-las – além das que provinham da terra indígena–na própria Manaus, em terrenos baldios, no campus da UFAM, nos canteiros e jardim particulares (onde era necessário pedir licença) saber em que época estão disponíveis em tal ou qual árvore. Então, a leitura que elas faziam da cidade de Manaus e a forma de apropriação eram feitas a partir das sementes e o livro da Ana Sertã se chama, justamente, Seguindo Sementes.


Vejam que coisa interessante: uma atividade que ao mesmo tempo é trabalho, é lazer, é recurso financeiro e é apropriação do espaço urbano. São dois exemplos que dou para mostrar como foi nossa entrada no campo para estudar aquelas formas de lazer e, mesmo na forma de mercadoria – as pulseiras e colares, no caso – abriram um campo para entender formas de uso e apropriação da cidade, por parte dos Sateré-Mawé.

Gosto de narrar esses episódios porque mostram que aquelas categorias que forjamos para estudar São Paulo foram utilizadas para entender os índios nas cidades, pois existe não só o “pedaço” dos indígenas, mas também trajetos que eles fazem, o circuito nas cidades, ligando desde a aldeia na terra indígena, em Ponta Alegre até Manaus, passando por Parintins com a Festa do Boi: vejam que se tem todo um circuito aí, não é? Então, é um desafio utilizar categorias trabalhadas no espaço da cidade de dimensões mega, como São Paulo de escala metropolitana, para estudar em outra escala, no caso Manaus e, nela as formas de uso de um segmento específico...[9] Quero dar mais um exemplo...


LEPURB: [Francivaldo Mendes] Você falando dessa movimentação indígena pela cidade e seguindo o roteiro das sementes, eu lembrei de um autor que faz a leitura dos espaços a partir de três perspectivas: o espaço enquanto vivido, concebido e percebido. Seria essa terceira o caso de se considerar nos exemplos trazidos por você?


Prof. Magnani: Neste caso, devo citar José Aldemir de Oliveira, reitor da universidade estadual do Amazonas (UEA), falecido há um ano: ele entendia muito esse aspecto. Era geógrafo e você o conheceu, não é, Neto?


LEPURB: [Francivaldo Mendes] José Aldemir, sim, de Manaus. Conheci.


Prof. Magnani: Foi ele quem me convidou a fazer o trajeto etnográfico sobre as cidades ao longo da calha do rio Solimões... Conheci também a professora Tatiana Schor.


LEPURB: [José Neto] conheci ambos. Eles têm um trabalho muito bom.


Prof. Magnani: Estivemos com ela em Manacapuru, uma cidade perto de Manaus; foi lá que fizemos também algumas incursões etnográficas.


LEPURB: [José Neto] E o trabalho do geógrafo urbano na Amazônia está entre entender aspectos que envolvem as desigualdades urbanas, um tema bastante desenvolvido no Brasil por Milton Santos, Roberto Lobato Corrêa, entre outros geógrafos; e essa questão das diferenças, dessa riqueza cultural. Quando você fala de uma cidade ribeirinha, você não está falando de uma cidade de uma área pobre, de uma pobreza em si, mas existe ali também uma diversidade de questões que podem ser abordadas do ponto de vista do espaço, do padrão construtivo, da integração entre as formas de morar e a floresta. Então é esse o desafio do geógrafo urbano na Amazônia hoje: estar entre a desigualdade e a diferença, não é?


Prof. Magnani: Exatamente.


LEPURB: [José Neto] E poder entender esses aspectos sem tender para um lado ou para o outro. Sem entrar demais na subjetividade, mas sem perder de vista a desigualdade capitalista e todos os problemas que são gerados a partir disso. O nosso desafio também é entender Altamira e os nossos debates geralmente vão em torno disso. Eu sou um pouco mais tributário de um “Mascarenhas”, digamos assim, e o Francivaldo é mais um “professor Magnani” [risos]. Então ele me diz “Neto, tu tens que entender de fato a profundidade dessas relações” e eu como um geógrafo que vem mais dessa escola marxista, trago outro debate. Então a gente vai enriquecendo essa discussão.


Prof. Magnani: Exatamente. É muito interessante o trabalho dos geógrafos porque com eles estabelecemos pontos de reflexão, uso dos GPS, etc. Um tema muito importante em Manaus foi o das palafitas. Havia uma pesquisadora, Marcia Meneghini, que trabalhou com o processo de mudança dos moradores dessas habitações às margens do rio para conjuntos habitacionais. Entre as propostas que observou foi quando a empresa queria contratar uma especialista em “boas maneiras” para ensinar como é que se deveria viver nesta nova condição, ou seja, saindo das palafitas para o conjunto habitacional. "É mais fácil tirar as pessoas da palafita do que tirar a palafita de dentro das pessoas”, foi uma das frases ouvidas....


LEPURB: [José Neto] Olha, que interessante.


Prof. Magnani: Que percepção, não é? A questão de uso do novo espaço e o preconceito...


LEPURB: [José Neto] Podemos nos encaminhar para o final, mas antes disso dizer que aqui em Altamira nós também trabalhamos nessa perspectiva, dessa mudança. Quando a Norte Energia veio com o seu projeto de reassentamento, grande parte das pessoas viviam em palafitas e elas passaram das palafitas para áreas, algumas mais altas das cidades. Isso alterou várias dimensões do cotidiano dessas pessoas, do modo de vida delas e os aspectos que Francivaldo tem trabalhado na tese dele. Para além disso, a gente tem discutido em várias dimensões: o lazer, o trabalho e a própria moradia.


Prof. Magnani: Sim.


LEPURB: [Francivaldo Mendes] mais o aspecto do lazer, e a gente queria entender de sua parte e você já falou um pouco como que você entende esse aspecto da mudança, como isso é percebido do ponto de vista de uma etnografia urbana. Tentando ver este caso de Altamira baseado em outros casos que você tenha pesquisado.


Prof. Magnani: Você se refere a Altamira ou Belém?


LEPURB: Altamira.


Prof. Magnani: [Francivaldo Mendes] Altamira eu não conheço, não sei qual é a dimensão da cidade. No geral, quando começamos uma pesquisa dessa forma, proponho uma estratégia para deslanchar o trabalho é o esquema composto por três momentos: cenário, atores e regras. Nas primeiras idas que o pesquisador faz a campo ele descreve o cenário, neste caso foi a descrição comparativa entre as palafitas e o conjunto habitacional. É a primeira tarefa, no momento inicial, ainda aproximativa. No segundo momento ele identifica quem são os atores, as pessoas que circulam por ali, não só dentro do condomínio, mas nas áreas livres no entorno e, finalmente, a forma como atores se comportam nesse cenário e as regras que organizam aí seu comportamento, suas interações. Observa-se a questão do lazer, quando as pessoas têm que aprender a usar, por exemplo, as áreas comuns. Não sei dizer se nesse lugar há uma área especial para as crianças ou piscina, ou áreas verdes, ou se eles têm que buscar formas de lazer que nas palafitas, que eram ligadas à água e agora foram trocadas por práticas em espaços cimentados ou fechados. Havia um contraste imenso agora e seria necessário começar uma pesquisa de campo sem muitas perguntas, mas com muita observação: como é que circulam, como os espaços são apropriados, em que momento, de que forma . Não ficam confinados, no condomínio, pois agora eles se relacionam com a cidade A propósito, há um texto meu na revista Ponto Urbe, chamado O circuito[10] que pode ilustrar melhor esse ponto. Eles têm um circuito de lazer que a cidade lhes oferece, enquanto nas palafitas esse circuito era mais restrito e agora eles estão, como você mencionou, na parte alta da cidade. Será que eles começam a explorar os elementos da cidade como os shoppings e outros lugares de venda, algum clube de futebol, outras igrejas? Como é o circuito de circulação deles? Isso dá uma pista para começar a pensar: o circuito das palafitas é um e o circuito do condomínio[11], para onde essas pessoas foram morar é outro – e quais os pontos de contato. As pessoas mantêm os vínculos de vizinhança, de visitas?


LEPURB: [José Neto] Elas foram destruídas e transformadas em parques ambientais que na verdade é só grama. Gramados e calçadas.


Prof. Magnani: E é um lugar onde as pessoas vão passear, vão circular ou não?

LEPURB: [Francivaldo Mendes] Raramente. Esse cenário suscita um debate que a própria cidade meio que nega ou tem uma espécie de aversão a esse tipo de lugar.


Prof. Magnani: Claro, devido ao estigma.


LEPURB: [José Neto] E além do estigma temos o próprio espaço como ele foi concebido. É sem arvores. Mas há sempre movimentos nos finaizinhos de tarde.


Prof. Magnani: Eu acho que nesse ponto o Francivaldo tem uma proposta, um desafio muito bom que é poder fazer uma comparação: como era antes, a partir de depoimentos dos antigos moradores e agora o que eles fazem. Concordo que o elemento comparativo é interessante, porque ele recupera o que chamo de “modo de vida na palafita” e um “modo de vida no condomínio”. Sob outro aspecto, podemos analisar se esse cenário é contrastante ou a palafita está dentro dele, o condomínio. Isso seria interessante observar.


LEPURB: [Francivaldo Mendes] Professor, vou tentar resumir essas duas questões. A primeira diz respeito à inserção da Amazônia na dinâmica da “modernidade”. Enquanto macrorregião, a Amazônia passa a incorporar, de maneira mais representativa, o conjunto de ações político-estratégicas a partir da segunda metade do século XX. A esse conjunto de elementos que redefinem relações, Octávio Ianni caracteriza como sendo expressões da “modernidade”[12] . Milton Santos discute esse cenário a partir da prevalência do domínio da técnica, enquanto atributo da reprodução ampliada do capital sobre a natureza, há uma sobreposição da técnica sobre a natureza. Pois bem, isso impacta o espaço e, naturalmente, as pessoas. Considerando esse cenário mais amplo, como que o senhor verifica [a mudança] a partir da implementação desses projetos, desses grandes projetos. E mais, como você avalia esse cenário de inserção de grandes projetos, a exemplo de Belo Monte, e a sua consequente repercussão no campo do lazer, onde a ideia de modernidade escamoteia as contradições e impõe uma visão equivocada do “arcaico, do atrasado”?


Prof. Magnani: Eu não tenho trabalhado explicitamente sobre essa questão que você está colocando, posso ter algumas pistas ao pensar em Belo Monte, por exemplo e essas grandes obras hidrelétricas. Nós fizemos uma pesquisa sobre o desastre da barragem do Fundão no rio Doce, que se estendeu de Minas Gerais ao Espirito Santo e suas consequências sobre o matrimônio cultural imaterial. Por uma questão contratual, tivemos de assinar um termo de confidencialidade, pois as conclusões, juntamente com as de com outras disciplinas – arquitetura, arqueologia, história – devem ser levadas em consideração para uma proposta de reparo, acionada pelo Ministério Público. Vocês devem ter acompanhado o processo.


LEPURB: Sim.


Prof. Magnani: Lá em Minas houve um desastre porque a barragem rompeu, mas se se pensar em Belo Monte, a construção da represa é que interferiu diretamente no modo de vida dos ribeirinhos: ou seja, como pescar agora? A pescaria é tanto uma atividade econômica, ou fonte de alimento para a família mas também momento e lugar em que o pai leva o filho que brinca na água, aprende a pescar. Assim, nesse sentido, o lazer se aproxima da questão a que alude Marcel Mauss quando fala sobre o “fato social total”. Ela é econômica, é lazer, é religiosa, é sociabilidade. O relevante é que o lazer, como um dos elementos do modo de vida dessas pessoas foi afetado. Todas essas obras mencionadas têm interferido no modo de vida tradicional dessas populações, tanto indígenas quanto ribeirinhas.


Uma grande obra como essa termina interferindo na paisagem que denomino “cenário”. Interfere diretamente na estrutura dessas paisagens que, ao longo do tempo, foram trabalhadas pelos atores sociais. Então, de novo a ideia do cenário, atores e regras. Esse é um novo cenário, alterado, que afeta modos de vidas tradicionais e é a etnografia que pode mostrar. É necessário fazer a pesquisa com a sutileza “de perto e de dentro” para se perceber quão profundas são as mudanças. Obviamente a ponte feita em Manaus, aquela imensa ponte sobre o rio traz impacto sobre os modos de vida. Quando se faz uma barragem do porte de Belo Monte não é só a questão das dificuldades para a pesca, mas ainda dos metais[13] usados na construção, que afetam a própria pesca e a sua qualidade. Não tenho experiências diretamente de pesquisa sobre esse caso, mas é certo que a própria implantação de obras como essas interfere também no lazer enquanto constitutivo do modo de vida. Naquela paisagem, outros aspectos do modo de vida, como as festas e procissões são afetadas. Voltando a Marcel Mauss, trata-se mesmo de um “fato social total” – com seu lado religioso, econômico, de sociabilidade, de festividades, educação. Todos esses elementos têm que ser levados em conta, é o conjunto todo importa. Realmente há os impactos de várias ordens, não só no lazer enquanto recorte específico, mas que sem dúvida faz parte do conjunto ampliado.


LEPURB: [Francivaldo Mendes] Desde o início da nossa conversa o senhor deixou muito evidente qual é o seu caminho teórico-metodológico. Para visualizar o lazer na Amazônia também acho que o senhor deixou muito claro isso. Tentando relacionar com o campo da geografia, na UFPA temos o professor Saint-Clair que discute a ideia da Urbanodiversidade, ou seja, quando se pensa sobre a Amazônia não se pode partir apenas de uma perspectiva universalizadora ou da biodiversidade. É preciso considerar as singularidades que estão presentes no espaço e nas relações, a sociobiodiversidade. São expressões dessa Urbanodiversidade o que ele chama de cidade da floresta e cidades na floresta e, mais recentemente, as cidades para floresta. O senhor já nos forneceu diferentes pistas metodológicas, gostaria apenas que finalizasse seus argumentos a respeito do aspecto teórico e metodológico sobre as pesquisas em lazer na Amazônia, isto é, como pensar metodologicamente o lazer na Amazônia.


Prof. Magnani: Essa perspectiva que você mostrou das cidades ribeirinhas versus cidades do interior, numa visão mais ampla, não estão isoladas, fazem parte de um circuito, porque as pessoas transitam por elas. A temporalidade é outra, um percurso em barco-recreio, por exemplo, no rio Amazonas pode demorar muito tempo, você mesmo falou isso. Fizemos etnografia no interior durante as viagens e o que significa montar a rede no interior de um barco-recreio? O que acontece durante esse tempo? É lazer? As pessoas estão muito próximas, se encontram, se evitam, conversam, trocam ideias, ou seja, há uma atividade durante a viagem. Só que a temporalidade é outra, diferente de tomar o metrô em São Paulo. Embarcar em um barco recreio que vai de Parintins a Manaus ou de Manaus a Ponta Alegre, ou então um circular de Manacapuru até Tabatinga, por exemplo, implicam tempos diferentes e isso certamente interfere na questão do lazer. Você já fez uma viagem assim de observação no barco-recreio, por exemplo, ficar dois dias viajando?


Para mim foi uma experiência marcante. Como é o cotidiano, como é a comida, quem faz a comida; quando se olha, tem-se a impressão que é um tédio aquele rio onde nada acontece e, de repente, surgem os outros barcos, se encontram. Ou chegam uns barcos das pequenas cidades, dos furos, para vender comida, produtos da mata, objetos manufaturados, etc.; há uma atividade imensa ali e é também lazer. Para quem está lá dentro é o lazer.


LEPURB [Francivaldo Mendes]: Professor, como relacionar ou como referenciar essas categorias[14] que são pensadas no espaço metropolitano (na metrópole paulistana) no espaço amazônico. E possível pensar assim?


Prof. Magnani: Você acaba de dar a pista. Quando fizemos a pesquisa com os índios urbanos a gente descobriu o pedaço deles, o circuito deles, os trajetos que eles fazem. Muitos dos Sateré-Mawé têm casa em Parintins, têm parentes aí, uma casa na terra indígena e outra em Manaus, que é de um parente. Então eles circulam em trajetos ditados pelas linhas de parentesco e afinidade. Não é muito diferente do que ocorre em São Paulo, quando se sai de um bairro para outro, mas em outra escala: ali, em Manaus, há trajetos também, trajetos regulares, não aleatórios, então é possível aplicar todas as categorias, levando em conta a dimensão e a temporalidade da Amazônia e isso é um belo desafio.


LEPURB: Quero agradecer mais uma vez a sua gentileza em nos conceder essa entrevista. Espero que dê certa sua vinda a Altamira e, mesmo que não pessoalmente, que possamos criar um momento como esse para os alunos do programa.


Prof. Magnani: Sim, podemos fazer uma oficina, uma etnografia, uma caminhada em Altamira. Até mais, um abraço.

 

Notas


[1] COSTA, Antônio Maurício Dias da; Festa na cidade: o circuito bregueiro de Belém do Pará. Belém, Belém, UEPA, 2009.

[2] MAGNANI, J. G. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.

[3] Magnani refere-se a: LE CORBUSIER (1989). Carta de Atenas. São Paulo, Hucitec/Edusp. Trad. Rebeca Scherer. Publicação original em francês em 1941.

[4] Magnani refere-se a Evans-Pritchard. 1978. Cap. 3 – “Tempo e Espaço”. In: Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições políticas de um povo Nilota. São Paulo: Editora Perspectiva. pp. 107-150.

[5] MAGNANI, José Guilherme Cantor. Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em antropologia urbana. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2012.

[6] LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos, Lisboa/São Paulo, Ed. 70/Martins Fontes.1981.

[7] Refere-se ao texto: “Do mito de origem aos arranjos desestabilizadores: notas introdutórias”. In: Magnani, José Guilherme Cantor; Spaggiari, Enrico (orgs) Lazer de perto e de dentro: uma abordagem antropológica. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2018.

[8] Expressão contida em: MASCARENHAS, Fernando. Entre o ócio e o negócio: teses acerca da anatomia do lazer. 2005. Tese (Doutorado em Educação Física) – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.

[9] Na coletânea Paisagens Ameríndias: lugares, circuitos e modos de vida na Amazõnia, organizada por Marta Amoroso, e Gilton dos Santos, dois capítulos, escritos por José Agnello, e Yuri Tambucci, Rodrigo Chiquetto e Ana Luiza Sertã tratam de suas experiências nessa incursão à Amazônia. São Paulo, Editora Tterceiro Nome, 2013

[10] O Circuito: proposta de delimitação da categoria. Ponto Urbe, n. 15, 2014

[11] O condomínio, nesse contexto, refere-se aos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs).

[12] Ver: “Enigmas da modernidade” Octavio Ianni. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 320p.

[13] Sobre isso ver: Fearnside, P.M. 2018. Belo Monte: Atores e argumentos na luta sobre a Barragem Amazônica mais controversa do Brasil. Revista NERA 21(42): 162-185.

[14] Refere-se à “família das categorias” desenvolvidas em: Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em Antropologia Urbana, São Paulo, Editora Terceiro Nome, 2012.

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