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O direito de falar no direito ao lazer

Atualizado: 14 de abr. de 2020

Por Francivaldo José da Conceição Mendes¹



Criança brinca em igarapé próximo ao RUC Jatobá em Altamira-PA.

Foto: Miranda Neto (2019)


E, no entanto, apesar da superprodução de mercadorias, apesar das falsificações industriais, os operários entulham o mercado, implorando: trabalho! trabalho! (LAFARGUE, 1999 p. 59).


Certamente, quando da publicação do manifesto “O direito à preguiça” , Paul Lafargue deve ter, guardadas as proporções, recebido de grande parte dos intelectuais da sua época tratamento semelhante ao que ainda hoje é atribuído àqueles que se propõem a discutir, ao invés do trabalho, o lazer, o ócio, a preguiça.


Invariavelmente ao falar, em geral no ambiente acadêmico, sobre as funções e os conteúdos do lazer não são raras as manifestações cujo sentido remete a uma relativização do tema. Dito de outra forma, é como se o lazer sobre o qual falo, correspondendo a uma dimensão funcionalista, meramente em oposição ao trabalho, não merecesse tanta credibilidade.


Aproveito para fazer duas observações: a primeira refere-se ao fato de que a comparação acima, possui função meramente didática. A segunda, sinaliza para o fato de que não tenho a pretensão de equiparar minha condição de pesquisador do lazer àquela do jornalista e intelectual franco-cubano.


Inicialmente, embora Lafargue não tenha se debruçado diretamente sobre o debate do lazer, penso ser importante referenciá-lo visto que a reflexão por ele proposta, em certa medida, subverteu a linearidade objetivista da reflexão teórica sobre o trabalho, consequentemente referente ao tempo “livre”² ou tempo disponível.


A subversão a que me refiro reside no fato da inversão da ordem do método sobre o objeto ao qual se investiga, neste caso a fruição do tempo disponível. Ainda hoje, ao se discutir o fenômeno do lazer, notamos um ceticismo que remete o tema a um debate de segunda grandeza. A realidade atual nos fornece um parâmetro para imaginarmos o cenário existente na época em que “o direito à preguiça” fora escrito,período de crescente expansão do capitalismo industrial em que o ideário produtivista, o “time is money”, ganhava centralidade numa sociedade que, rompendo com uma dinâmica agrário-rural, chegava num cenário de implosão-explosão a que se refere Lefebvre (2008).


Evidentemente Paul Lafargue não propunha uma defesa da vagabundagem, do ócio com sentido em si mesmo, menos ainda defendia uma sociedade sem trabalho. A preguiça a que se refere o autor pode ser, no meu entendimento, caracterizada como condição, meio e produto da sociedade que deveria cultivar a utopia da emancipação dos sujeitos em sociedade.


Não se advoga, entretanto, em favor de uma retificação do método científico que privilegiou a análise do trabalho em detrimento do lazer, menos ainda que se deve elidir do debate categorias como o trabalho, a ideologia, a propriedade, etc. Não é esse o caminho que aqui se deseja iluminar.


Contrariamente ao que aparenta numa primeira aproximação, as ideias de Lafargue visavam chamar atenção para o caráter alienador do trabalho desenvolvido com um fim em si mesmo. Logo, seria simplista a interpretação de que o autor propunha uma sociedade de preguiçosos, de vagabundos, termos aliás amplamente disseminados na época da revolução industrial cuja semântica suscitava a um valor negativo.


Do mesmo modo, seria incompleto compreender o lazer como antítese do trabalho. Por ser um fenômeno moderno, lazer é bem mais que uma simples negação do trabalho. Senão vejamos: um desempregado goza de tempo “livre”, mesmo assim, na sociedade atual dificilmente vivenciará o lazer, pelo óbvio fato de que predomina na sociedade capitalista o que Mascarenhas (2005) denominou de mercolazer³.


Portanto, a atualidade teórica de uma obra escrita há mais de cem anos converge centralmente com o tempo atual do trabalho e de seus efeitos no tempo disponível. A centralidade interpretativa da obra que citamos ao denunciar a “loucura que acomete a classe operária”, sugere uma sociedade em que o trabalho deve ser um meio e não fim, um fundamento e não limite da vida em sociedade. Denuncia o autor:


Uma estranha loucura dominou as classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Essa loucura traz como conseqüência misérias individuais e sociais que há séculos torturam a triste humanidade. Essa loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda que absorve as forças vitais do indivíduo e de sua prole até o esgotamento (LAFARGUE, 1999 p. 19).


Dessa forma, paradoxalmente, o direito à preguiça constitui-se no direito a mais trabalho, destituído de alienação, que coopere para a emancipação do homem, um trabalho que supere a precarização. O direito à preguiça coexiste na ruptura com a forma alienada de trabalho que retira da dimensão humana a possibilidade da fruição da vida social num tempo livre de trabalho.


É na fronteira do trabalho como condição fundante da vida humana e do trabalho como degradação, como alienação, que reside a possibilidade de se discutir o lazer, não como mera e simples negação do trabalho, mas como expressão dos diversos grupos sociais nos diferentes tempos e espaços.


Como afirmamos, tempo livre não é condição suficiente a fruição do lazer. Logo, pensar o lazer na sociedade urbana atual é refletir sobre o modo com que o espaço é produzido, bem como a relação que os sujeitos mantêm com estas espacialidades a partir do tempo disponível.


Por “uma estranha loucura”, Lafargue caracterizou o amor ao trabalho que, absorvendo completamente a vitalidade de quem trabalha, aprisiona-o numa condição permanente de alienação. É nesse limite que entendemos a necessidade de um debate que insira o lazer para além da dimensão compensatória, utilitarista. É também a necessidade de considerar a cidade como espaço da fruição, do corpóreo, da expressão total dos sentidos humanos.


Todavia, a cidade que se apresenta no tempo atual privilegia o habitat em relação habitar, a dominação à apropriação dos espaços. Assim, elide-se a perspectiva da cidade como obra humana, como estética que se fundamenta na dimensão vivida, nos valores comuns, no uso coletivo.


Tão difícil quanto desconstruir tabus e estereótipos sobre a temática do lazer é articular esse debate a discussão da cidade que deve ser vista como produto, meio e condição humana. Na contramão dessa perspectiva utópica, notamos a crescente explosão do fenômeno urbano que se consolida por uma crescente abstração do espaço remetendo a cidade a uma dimensão homogênea, hierárquica e fragmentada, apresentada por Lefebvre (2001)


É nesse cenário que o lazer, rompendo uma barreira de ordem teórica, precisa ser incorporado aos diversos segmentos sociais, afim de que possa ser visualizado como componente prático na/da vida cotidiana. Todavia, reconhecemos que a história não começa aqui e agora, isto é, muito já foi feito no campo do lazer, tanto por teóricos brasileiros, quanto por estrangeiros. O que chamo atenção é a pouca eficácia e repercussão do debate sobre o lazer, em especial entre aqueles que mais necessitam vivenciá-lo, os mais pobres. Penso que a tática aqui enunciada não se constitui numa fórmula binária, embora reconheça que a mesma tem potência para somar ao que já vem sendo pensado e produzido no campo do lazer.


O tabu a que me referi, fruto de um pensamento cético, alimenta uma espécie de crise de identidade que orbita a temática do lazer. O lazer na cidade, torna-se quase que uma dimensão abstrata, intangível. Essa crise contribui para que seus conteúdos sejam tratados de forma programática, isto é, previsões a posteriori. Tal percepção, em geral institucionalizada, tem efeito imediato no plano do cotidiano, ou seja, incorpora-se no imaginário coletivo que lazer é um privilégio de quem pode pagar, não sendo, portanto, uma dimensão vital à dinâmica espacial das cidades, das pessoas.


É nesse cenário que as cidades são concebidas como espaços de passagem, como local do des-encontro, como abstração totalizante do cotidiano. O lazer que não é considerado um conteúdo fundamental da cidade, torna-se um produto, uma mercadoria, cuja centralidade reside na sua mercantilização. Delineia-se o espaço da cidade considerando as expressões do lazer como mais um item a ser incorporado à dinâmica capitalista.


Soma-se a perspectiva reducionista do lazer-mercadoria, vinculada diretamente a produção do espaço capitalista, uma dimensão mais sutil. Refiro-me a contribuição enviesada que faz as ditas “ciências parcelares”, já debatido por Lefebvre (2001), quando reduzem o debate da cidade, enquanto utopia, a uma ação mediada, tutelada, pelo Estado, isto é, o direito à cidade, sugerem as ciências parcelares, deve constituir-se em políticas públicas.


Concordando com Lefebvre (2001) o direito à cidade, em especial o direito ao lazer, não passa fundamentalmente pela ação direta do Estado, ao contrário, é preciso uma ruptura radical na dimensão teórica e prática, sem a qual continuaremos alimentando um tabu que por sua vez retroalimenta esse crise do pensamento sobre o lazer enquanto conteúdo das cidades e expressão do cotidiano.


Por fim, retomando a epígrafe, não é mais trabalho é um trabalho que caminhe no sentido da emancipação do homem como sujeito e não coisificado pela alienação do labor. Do mesmo modo, antes de falar em direito ao lazer importa superar o tabu que é falar em lazer, como foi um tabu reivindicar preguiça na época de Lafargue. Lá e cá, a coisificação do homem pela degradação alienadora do trabalho se expande, comprimindo a fruição do tempo disponível.


Se na época da revolução industrial prevaleciam jornadas de trabalho de até 16 horas diárias, hoje o crescente processo de uberização do trabalho cumpre esse paralelo potencializador de precarização. Por isso, é preciso que o lazer seja visualizado como uma dimensão concreta, superando a perspectiva programática, efeito de uma agenda política. Finalmente, a ciência precisa visualizar o lazer como expressão orgânica da sociedade, dos sujeitos, e não como extensão material de políticas públicas tuteladas pelo Estado.


O direito ao lazer, conforme o direito à cidade, fundamenta-se numa perspectiva utópica. No primeiro momento, parece-me que é preciso garantir o direito de se falar no lazer para então, percorrendo o caminho utópico, estabelecer uma ruptura radical com o modo atual da produção da cidade, das formas alienadoras de trabalho e da fruição do tempo disponível.


Acredito que esse desafio obterá êxito na medida em que superar os limites formais da produção do conhecimento, indo ao encontro daqueles que menos vivenciam o lazer nas cidades. Certamente, a superação desse desafio não passa unicamente pela produção acadêmica, pela formalidade das ciências parcelares, ou mesmo pela tecnocracia do Estado, acredito que a saída passa por uma ação coletiva cujo sentido subsiste numa dimensão teórico-prática.


 

Notas


1. Doutorando em Geografia-PPGEO/UFPA. e-mail: francivaldo.edfisica@gmail.com

2. Marcellino (1987) entende que numa economia de base capitalista não se pode falar em tempo livre e sim em tempo disponível.

3. A expressão “mercolazer” sintetiza a submissão do lazer enquanto expressão humana à forma-mercadoria.


Referências


LAFARGUE, P. (1999). O direito à preguiça (J. Teixeira Coelho Netto, trad.). São Paulo: Hucitec.

LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

MASCARENHAS, Fernando. Entre o ócio e o negócio: teses acerca da anatomia do lazer. 2005. Tese (Doutorado em Educação Física) – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.

LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Tradução de Sérgio Martins e Revisão Técnica de Margarida Maria de Andrade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.



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